Com quantos litros?

De uns tempos para cá, você talvez já tenha ouvido o termo “litragem” (o volume total da prancha) em conversas ou artigos sobre design de prancha. É mais uma medida a ser incorporada pelo surfista na hora de encomendar ou comprar um foguete novo. Para entender melhor como isso funciona na prática, pedimos para o experiente shaper Avelino Bastos explicar esse conceito. 
A primeira vez que tive contato com o conceito de “volume” em pranchas foi quando morei na França, no início dos anos 80. Naquele tempo, esse conceito ainda era muito vago no surf, mas já era bem difundido no windsurf. No design de pranchas de surf, normalmente utilizávamos como parâmetros somente tamanho, largura e espessura. Sempre tivemos muito de “intuição” e pouco de “ciência”. Apesar de o windsurf ser um esporte mais recente, aqueles designers já estavam muito mais envolvidos com a física do ponto de vista científico. Foi por volta dessa época que comecei a desenvolver meus conhecimentos do que vim a chamar de “flutuação estática” (sem movimento) e “flutuação dinâmica” (sustentação em movimento).
O “volume” tem ligação direta com a “flutuação estática” de uma prancha e é um conceito relativamente muito simples, o difícil é calcular sem recursos técnicos e conhecimento de matemática aplicada. Naquele tempo era uma loucura. Hoje em dia ficou fácil com os programas de desenho com auxílio da computação, CAD, que já fornecem um cálculo cúbico da peça desenhada. O volume é medido em metros cúbicos (m³), mas a capacidade de preencher esse volume é dimensionada em litros (L). No surf, em geral as medidas de volume são em litros (sistema decimal). Mesmo quem utiliza pés e polegadas nas medidas da prancha normalmente utiliza litros como padrão de volume. 

Conceito e prática

Para facilitar o entendimento do conceito, imagine uma prancha como se fosse uma garrafa PET de refrigerante vazia, que vai sendo preenchida com água, litro a litro, até encher completamente. Ao final, saberíamos quantos litros, e partes de litro (mililitros), couberam na garrafa. Esse seria o “volume” em litros da prancha. Pranchas pequenas podem ter de 18 L a 30 L, longboards, na faixa de 75 L a 90 L e pranchas de SUP podem chegar a até 300 L.
O volume tem relação direta com a flutuação de uma prancha. Mas a área, o comprimento e a largura combinados também influenciam na distribuição desse volume na água e impactam na flutuação da prancha. Por isso nem sempre o mesmo volume serve para todo tamanho e modelo de prancha. Uma 5’10” com 29 L é normalmente boa para um surfista de 75 quilos. Já uma 6’2”, para o mesmo surfista pegar ondas maiores, deve ter um pouco mais de volume para compensar, algo em torno de 30 L. Mas tudo isso é muito relativo, e questões de design de cada modelo e shaper podem variar muito esse parâmetro de “volume”. Imagine que esse surfista de 75 quilos tenha 15 anos, ou 25, ou mesmo 45. Cada faixa de idade, nível de habilidade, preparo físico e frequência com que surfa influenciarão na definição do volume ideal.
É aí que entra a habilidade e a intuição do shaper para definir o melhor design e modelo de prancha com o “volume” mais adequado. A flutuação (chamada de “empuxo” na física) é o resultado do volume e do peso que um objeto tem.  Seguindo a ideia da garrafa PET, se estiver cheia de água, ela afunda. Porque o seu peso é igual ou maior que a água à sua volta. Se esvaziar um pouco e substituir por ar ela já começa a flutuar. Ou seja, o mesmo “volume” passa a ter menos peso. Transpondo essas questões da física para pranchas de surf, independente do volume, o peso da prancha tem influência direta no centro de gravidade e na inércia dos movimentos (manobras). 
Materiais e você na equação
Muitos se enganam quando pensam que pranchas feitas com diferentes materiais influenciam na flutuação. Pranchas feitas com a mesma forma (área e volume) e mesmo peso (por exemplo, 2 quilos), mas com materiais diferentes (PU, EPS, papel ou mesmo metal), flutuam igual se o volume e o peso forem iguais. Outro engano comum é imaginar que o peso singular da prancha influencia muito na flutuação no surf. Uma prancha nunca está flutuando sozinha, tem sempre alguém em cima, não é mesmo?
Uma prancha de 5’8” a 6’2” normalmente varia de 2 quilos a 2,5 quilos. Existem pranchas até com 1,5 quilo de peso (sem quilhas), mas depende dos materiais e da forma como é construída. Vamos utilizar uma prancha comum como exemplo, uma 5’10” com volume 29 L para um surfista de 75 quilos. Soma-se o peso da prancha ao do surfista (2 quilos+75 quilos) e teríamos ao final 77 quilos. Se optarmos pela prancha mais pesada, 2,5 quilos, o peso final ficaria 77,5 quilos – meio quilo de diferença não é nada no todo (tem gente que tem mais que isso de excesso de parafina velha no deck). Imagine então que uma roupa de borracha molhada chega a pesar até 5 quilos. Ou seja, o peso de uma prancha e seus materiais faz pouca diferença na flutuação do conjunto final.
Gabriel Medina, por exemplo, tem experimentado pranchas diferentes depois que ganhou peso, como explica seu shaper Johnny Cabianca: “Quando comecei a trabalhar com o Gabriel em 2009, ele usava 5’10” x 18 ? x 2 ? x 21 L. Um modelo bem ‘sequinho’ de volume para seu peso na época. Uma prancha bem sensível, com concaves bem profundos. Esse modelo segue até agora e chama-se DFK (Da Freak Kid). Hoje, a mesma prancha está com 5’11” x 18 ¾ x 2 ? x 26,7 L. Ano passado o Gabriel teve um aumento de peso e altura consideráveis. Tecnicamente falando, os litros de suas pranchas passaram de 25,5 l para 27, l. Provamos um pouco menos de curva e pranchas menores, fazendo com que elas ganhassem mais largura e menos dome-deck. Assim, pude chegar à litragem suficiente para seu atual biotipo”.
Toda essa questão de volume tem a ver com o que chamei de “flutuação estática” (sem movimento), aquela que você está sobre a prancha e ela te mantém (ou não) sobre a água.
Tem aquele outro tema da “flutuação dinâmica” (sustentação em movimento), que faz você “planar” sobre a água, mas esse é um assunto para uma próxima matéria, pois são muitas variáveis que vão além dos litros e das dimensões básicas, como engenharia de compósitos na construção, matemática, física, mecânica dos fluidos e hidrodinâmica… E a complexidade vai longe.
Por Avelino Bastos – Matéria publicada originalmente na edição de fevereiro de 2014 da Revista FLUIR.